
O Mundo Esquecido
Capitulo 1
O vento arrastava algo que soava como areia… mas não era areia. Os grãos que rolavam pelo deserto quebradiço tilintavam como pequenos fragmentos de vidro, raspando uns nos outros, rangendo baixo a cada rajada. Quando o sol, pálido e sem vigor, acertava o chão no ângulo certo, surgia um brilho rápido — o reflexo de superfícies curvas, derretidas, deformadas.
O chão inteiro era um cemitério de formas esquecidas.
Tampas que já não tampavam nada. Paredes ocas que nunca chegaram a ser paredes. Engrenagens murchas, corroídas por um tempo que parecia mastigar tudo que tocava. Era um mar infinito de objetos sem alma, ruínas de um passado que não se lembrava de ter existido.
Ao longe, o ar tremulava em ondas lentas, revelando e escondendo as silhuetas tortas de antigas cidades. Torres curvas, torres derretidas, torres que pareciam ter amolecido e cedido como se o próprio mundo tivesse desistido de sustentar suas formas.
Uma dessas torres desabou com um estalo súbito, enviando um eco seco pelo horizonte. Ninguém veio ver. Ninguém reagiu. Era só mais um pedaço do mundo desmoronando em silêncio.
O céu também parecia cansado. Não havia azul, nem nuvens, nem tempestades dramáticas. Apenas um cinza constante, uniforme, como se alguém tivesse apagado as cores do firmamento com um único gesto preguiçoso. De vez em quando, vultos escuros atravessavam a camada mais alta — formas tremulantes, longas, retorcidas — mas nunca desciam o bastante para serem vistas por completo.
Um som surge.
Fraco.
Regular.
Metálico.
Clanc. Clanc. Clanc.
Um ritmo cadenciado, quase ritualístico, que contrastava com o silêncio mórbido do ambiente.
Então a poeira se abriu.
Primeiro veio a sombra — alta, sólida, firme — projetada no chão irregular. Depois, a figura inteira emergiu. Uma bota de metal polido, pesada, desceu sobre uma peça branca deformada que estalou sob o peso, se esfarelando como porcelana velha.
A bota permaneceu ali por um instante, imóvel, como se avaliasse o terreno. O metal tinha marcas de corrosão, mas era inteiro, consistente, diferente de tudo ao redor. O vento empurrou mais poeira, revelando o dono daquela sombra.
Era a primeira coisa com forma verdadeira que surgia naquele deserto em muitos anos.
Ao redor, nenhum som além do vento — e agora daquele caminhar firme, pesado, como se cada passo afirmasse: algo diferente voltou a existir aqui.
O deserto parecia recuar diante dele.
Ou talvez apenas estivesse surpreso.
Entre os restos quebradiços e cores mortas, aquela figura não era cinza.
Num mundo onde tudo desbotava, ele era… nítido.
E nítido demais para passar despercebido.
Porque nas dunas disformes — entre plásticos pétreos e superfícies rachadas — algo começou a se mover.
Muito devagar.
Como se o próprio mundo, adormecido por séculos, tivesse acabado de sentir o toque de algo sólido… e despertasse, curioso.
Ou faminto.
O passo firme da figura avançou mais alguns metros antes que a poeira baixasse o suficiente para revelar seu rosto. Não era humano. Nem completamente fera. A pele, de um cinza fosco, parecia esculpida no mesmo material quebrado do próprio deserto — mas nele, curiosamente, a textura não se desmanchava. Apenas rachava em padrões que lembravam metal mal fundido.
As presas curtas despontavam sob o lábio inferior, curvando-se num ângulo agressivo. Os olhos, amarelados, tinham aquela expressão de quem calcula tudo… exceto as consequências. Cada respiração dele produzia pequenas nuvens de poeira que se acumulavam nos vincos da armadura.
E a armadura…
Nenhuma peça combinava.
Placas tortas se sobrepunham umas às outras, presas por rebites improvisados. Algumas pareciam feitas de ferro, outras de resina derretida, outras de plástico reciclado que ainda mantinha marcas de impressão falha nas bordas. Era um traje montado às pressas, feito com materiais baratos, mas carregado com orgulho — o orgulho do tipo de pessoa que nunca admitiria ter feito algo ruim… mesmo quando estava óbvio.
Nas costas dele, preso por uma tira de couro ressecado, havia um machado.
Chamado de “machado” por pura gentileza.
A lâmina tinha nascido torta, com um lado mais grosso que o outro. A borda ondulada parecia ter derretido e solidificado de novo, mal definida, quase inútil… mas pesada. Pesada o suficiente para causar dano não pela lâmina, mas pelo peso mal distribuído. K’torr ajeitou o cabo apoiando o machado no ombro por um momento, e o movimento fez a arma soltar um rangido plástico, quase vergonhoso.
Mesmo assim, ele sorriu de canto.
Um sorriso torto.
Ganancioso.
Orgulhoso do próprio caos.
K’torr era um orc cinza, mas não daqueles destinados a glória.
Ele era feito de sobras.
E vivia disso.
O vento aumentou, levantando mais poeira e assobiando pelos buracos de sua armadura irregular. Ele estreitou os olhos, analisando o horizonte cinza e morto como se estivesse avaliando oportunidades — restos valiosos, sucata vendável, qualquer coisa que gerasse lucro rápido.
Mas havia outra coisa no ar.
Algo que ele não percebia… mas o deserto percebia.
E então, longe… muito longe… uma gota de cor surgiu.
Era minúscula, quase uma faísca azulada que piscou na paisagem. Uma anomalia. Uma falha. Algo que não deveria existir ali. K’torr franziu a testa, tentando entender se era algum reflexo ou apenas poeira brilhando. Mas enquanto ele observava, outra pequena mancha de cor cintilou. Depois outra. E outra.
Ele ergueu o machado torto, cauteloso.
A cor se aproximava.
Não como uma criatura.
Não como um inimigo.
Mas como uma presença.
Uma presença que andava contra o vento.
O deserto, acostumado ao cinza eterno, começava a trincar, como se estivesse prestes a despertar de um pesadelo longo demais.
E K’torr, o Forjador Errático, não fazia ideia de que seu caminho estava prestes a cruzar com algo que ele nunca seria capaz de vender, trapacear ou dobrar à sua vontade.
Algo sólido.
Demais para ele.
Algo… colorido.
Ao longe, quatro silhuetas surgiram no topo de uma duna — pequenas no início, depois moldadas pela luz fria.
O vento empurrou o manto verde de uma delas para trás. Outra ergueu um escudo largo como uma muralha. Uma terceira, pequena, cruzou os braços com arrogância cômica. A menor delas carregava uma luz quente, viva, impossível naquele mundo morto.
Eles não pertenciam ao cinza.
Eles rompiam o cinza.
E quando as primeiras cores tocaram o horizonte, o mundo — o velho mundo deformado — tremeu.
O deserto não estava mais sozinho.
